Aquele era um domingo ensolarado como tantos outros. João é que não estava o mesmo. Tomou banho e vestiu-se entre cantos e assobios. Depois saiu apressado levando no rosto uma expressão de ansiosa alegria. Ia para o parque.
João trabalhava numa construção próxima a uma feira livre. Todos ali o conheciam bem. Tornou-se popular pelas tantas confusões que provocava. Brigava quase sempre. As pessoas daquele lugar perderam a conta de quantas vezes o viram mostrar como dominava a arte da capoeira. Se dissessem ou fizessem algo que o ofendesse, lá estava ele fazendo suas pernas girarem no ar. Não é que João fosse má pessoa, não! Era só alguém que não sabia levar desaforo pra casa.
Entre aqueles feirantes, João fez um grande amigo, o José. Rapaz simples, boa praça, brincalhão, estimado por muitos. Na hora do almoço, João pegava sua marmita e ia para a barraca do amigo. Almoçavam, conversavam, riam... Havia entre eles, e isso qualquer pessoa que olhasse veria, uma cumplicidade tal que os assemelhava a irmãos.
Numa dessas conversas José disse a João que estava gostando de alguém, que haviam saído algumas vezes e que parecia que as coisas entre eles ficariam sérias. Pensava em ir, o quanto antes, conhecer os pais dela. Eram já adultos, donos da própria vida, mas ela era moça de família, por isso queria fazer tudo corretamente. Não disse o nome da moça, apenas que morava perto da Boca do Rio. O amigo João ouvia atento e demonstrava alegria por ele.
Depois dessa conversa, João se pôs a pensar que talvez também já estivesse na hora de encontrar alguém para dividir a vida com mais intimidade, de forma mais séria. Matinha um ou outro caso, mas tudo muito rápido, sem compromisso. As mulheres gostavam do seu tipo forte e vigoroso, e ele adorava andar sem camisa expondo os braços, o corpo malhado pelo trabalho duro e pelo esporte a que se dedicava. Gostava mesmo de se exibir e de namorar também, porém tudo o que José disse o levou a refletir sobre o modo como levava a vida.
Certo dia no ônibus que pegava para ir ao trabalho, cedeu seu lugar a uma jovem que se aproximou dele com alguns livros na mão. Ela aceitou e agradeceu o favor. A poltrona era uma daquelas mais altas da condução, de modo que os dois ficaram próximos e puderam conversar um pouco. Ele perguntou o que ela estudava e ela respondeu que estava fazendo um curso de radiologia. Ele disse que trabalhava na construção de um prédio. Ela disse que também seu pai trabalhou a vida inteira na construção civil. Conversaram sobre outras coisas triviais como essas, até que chegou o ponto onde ela saltou depois de agradecer mais uma vez e despedir-se. E durante todo o dia João pensou naquela moça. Não sabia seu nome e não perguntou, porque não se pergunta o nome de alguém que se conhece em um transporte coletivo. Mas sua fisionomia lhe ficou muito viva na lembrança. Decidiu que no dia seguinte sairia no mesmo horário para tentar revê-la e assim o fez.
Por duas semanas seguidas os dois se encontravam no ônibus e conversavam. Disseram um ao outro o próprio nome. Não admitiram logo, mas estavam se deixando envolver. Pouco tempo depois, começaram saltar um ou dois pontos antes daquele no qual ela costumava saltar, para poderem conversar mais tranquilamente. Daí não demorou muito para João dizer que estava interessado nela, que nas últimas semanas ela lhe absorvia todo o pensamento. Ela reconheceu que também estava gostando dele, mas estava se envolvendo com outro rapaz e não queria enganá-lo. Pediu que João lhe desse um tempo para acertar sua situação com o outro e os dois poderem ficar juntos.
De tudo isso que estava acontecendo consigo, João nada disse ao amigo. Este o percebia mais pensativo, meio alheio às conversas, mas se perguntava, João dizia não ser coisa importante. O amigo respeitava e ele se esforçava para parecer o mesmo de sempre, mas já não era. Tinha esperança de que logo diria a José que também ele havia encontrado alguém especial com quem teria um relacionamento sério.
Depois de quase um mês, numa daquelas manhãs, uma sexta-feira, encontraram-se novamente, e ela, após saltarem do ônibus e chegarem a um lugar mais reservado, envolveu com seus braços o pescoço de João e lhe disse que estava livre, que poderia estar com ele com a consciência tranqüila, porque na noite anterior havia terminado com o outro rapaz. Ele tinha ficado triste e até furioso, mas com o tempo, ela estava certa, iria esquecê-la e encontrar outra pessoa. João a abraçou firme e beijaram-se. Ela seguiu para o curso, ele foi satisfeito para o serviço, sem disfarçar a alegria que lhe tomava.
Nesse mesmo dia, na hora do almoço, pegou sua marmita e foi para a barraca de José decidido a contar tudo, a compartilhar com ele a sua alegria, mas José estava sombrio, triste. Sequer lhe recebeu com alguma de suas brincadeiras como sempre fazia. Ficou tentando imaginar o que poderia ter acontecido, mas José não fez qualquer suspense; contou-lhe tudo na mesma hora. Sua namorada, começou ele, já havia algum tempo estava diferente, distante. Ele lhe perguntava o que estava acontecendo, se tinha algum problema, se poderia ajudar de algum modo, mas ela dizia que nada demais, que estava cansada ou preocupada com alguma coisa pequena. Entretanto, não compreendia o porquê de na noite passada ela lhe ter dito que queria acabar tudo entre eles, porque já não gostava dele como antes. Não queria magoá-lo, apenas terminar aquele relacionamento e que seus pais já sabiam e apoiavam sua decisão, que ele seguisse sua vida, que certamente encontraria alguém que gostasse dele realmente. Até tentou contra-argumentar, mas ela estava decidida, acabava ali seu relacionamento com ele. João ouviu tudo com muita atenção e não teve coragem de contar sua história para o amigo. Era hora de ser solidário, de apoiá-lo. Deixou para depois.
Como havia marcado no último encontro com sua nova namorada, João chegou ao parque às dezesseis horas pouco depois também ela. Abraçaram-se, beijaram-se afetuosamente e ele lhe presenteou com uma rosa. Depois, de mãos dadas, foram comprar os ingressos para a roda gigante e sorvete. Subiram no brinquedo e riam, se divertiam, estavam felizes. José também resolveu ir para lá, queria espairecer, esquecer os problemas. Gostava daquele lugar, viveu bons momentos ali com sua ex-namorada. Ao chegar, dirigiu-se ao sorveteiro, e enquanto esperava, olhava as pessoas nos brinquedos, pensando em qual iria brincar. Foi assim que viu na roda gigante João com uma companhia ao seu lado. Inicialmente não enxergou bem, pagou o sorvete e foi na direção do brinquedo no qual tinha visto o amigo. Sentiu-se zonzo quando reconheceu ao lado do amigo, Juliana. Ele tinha uma rosa não mão. Tudo fez sentido para ele. Ela o havia deixado por causa de João. Entendeu que havia sido traído por sua namorada e por seu amigo. Ficou parado diante da roda gigante pensando tudo isso com a racionalidade de um louco.
O brinquedo parou e as pessoas foram descendo, e assim também João e Juliana, que não viram logo José. Quando o reconheceu João sorriu e foi ao encontro dele com a confiança de sempre, arrastando a namorada, que sem que ele percebesse, relutava para não ir e quis abraçá-lo, entretanto, José o afastou. João não compreendeu aquele gesto até que ele o chamou de maldito, traidor e o acusou de ter roubado sua namorada e a acusou também de tê-lo enganado. Então João compreendeu o que estava acontecendo, mas era tarde. José havia conseguido não se sabe como, uma faca com a qual se atirou contra o casal, matando um e depois o outro. E saiu dali correndo desvairado, o José, não mais brincalhão, que logo a polícia prendeu.